Capacete e ciclista urbano: usar ou não usar?

Fontes como os media e autoridades, por exemplo.

Eu referia-me à obrigação de usar o capacete e não tanto à discussão de
corrermos ou não riscos em não usá-lo. Algo que diga preto no branco que
não é obrigatório.

@tiagosantos não sei se estou a ver a questão da mesma maneira que, mas nada mais assertivo e claro do que a lei…

Sim, a lei é assertiva, mas talvez nem todas as pessoas percebam a
linguagem.

Tiago talvez esta notícia ajude:
http://pedais.pt/psp-anula-multa-a-ciclista-por-circular-sem-capacete/

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uma clara incidência na Austrália e nos EUA, por sinal dos países mais carro-dependentes, e onde existem elevadas sinistralidades rodoviárias em comparação com a Europa. Por essas terras os serviços de inteligência da BP e da Exon, fizeram um excelente trabalho de marketing.

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No “debate sobre o capacete”, como em muitos outros, convém definir muito bem o que estamos a debater.

Pior que não saber a resposta é não saber qual é a pergunta.

Há várias vertentes a ter em consideração e, para que o debate seja construtivo, é sempre importante tentar não as misturar (apesar de algumas delas estarem diretamente ou indiretemente relacionadas). Vou tentar caracterizar as várias vertentes do debate e os diferentes aspectos a ter em consideração sobre cada uma delas:

A) Qual é a eficácia mecânica do capacete quando um ciclista cai de cabeça.

O que está em causa: Reparem que este debate é meramente técnico e científico. Tem uma grande dificuldade à partida: é eticamente impossível experimentar com testes reais. Por isso a eficácia é medida com simulações computacionais, por exemplo. Podemos também medir a gravidade do ferimento dos ciclistas que caiem de cabeça sem capacete, com a gravidade dos que caiem sem capacete. Mas nestes casos começamos a ter problemas de amostragem. Por exemplo, é provável que a amostra dos ciclistas que caíram com capacete tenham caído a uma velocidade superior do que os que caíram sem capacete. Porque a população (o universo) que usa capacete tem comportamentos e usos diferentes da que não usa capacete.

O que se sabe: Há muita produção científica sobre esta questão e o que se discute não é tanto a eficácia do capacete mas a) o grau de eficácia b) efeitos adversos. As controvérsias advêm do uso de amostragens com desvios estatísticos devido a confundidores. O grau de eficácia do capacete depende também muito do tipo de queda. Por exemplo, se o crânio bate no asfalto, ou em terra-batida, chapa do automóvel ou lancil, mas também da velocidade a que o crânio bate na superfície rígida, que é obviamente diferente da velocidade a que circulava o ciclista - se este colidiu, por exemplo, com um automóvel. Sobre b) também existe alguma investigação que se prende essencialmente com os efeitos de torção do pescoço e sufocação pela alça do queixo. O efeito de torção é interessante perceber e explica porque é que os bons capacetes têm uma superfície “escorregadia” - interessa que o capacete não exerça fricção sobre a superfície de embate, para não criar forças adversas no pescoço. Por isso também é que é menos eficaz, ou podendo mesmo ser perigoso, usar capacetes disfarçados com pano, por exemplo. As questões da sufocação pelas alças, é algo que acontece com crianças e está essencialmente associado à má colocação dos capacetes - temos que ter sempre em consideração que uma elevada percentagem de criança usa os capacetes colocados de forma errada.

Possível posição a ter sobre o assunto: É um assunto meramente científico e por isso mesmo devemos só estar muito atentos à forma como a investigação foi conduzida e os pressupostos utilizados. É empiricamente fácil de acreditar (e possivelmente provar para certo tipo de quedas) que, quando um ciclista cai de cabeça, o capacete tem algum grau de eficácia. Resta de saber como ocorreu essa queda e se os efeitos adversos anulam os benefícios ou não.

B) Qual o grau médio de eficácia dos capacetes numa população (universo) extensa (um país por exemplo).

O que está em causa: esta questão já é mais complicada que a pergunta anterior - mas possivelmente mais interessante para aferir o risco individual e seguramente essencial para decidir uma política pública. Porque as variáveis “confundidoras” são mais frequentes, estas causam verdadeiros problemas à resposta correta a esta pergunta. Reparem que a primeira pergunta assume que o ciclista já caiu de cabeça. Isto é, o nosso universo já é confinado às quedas de cabeça. Neste caso, o universo alarga-se e os problemas de amostragem complicam-se profundamente. É fácil de compreender que o tipo de queda varia muito com o tipo de utilização da bicicleta. Por exemplo é natural que um praticante de BTT tenha mais probabilidades de cair de cabeça e em terra-batida que um utilizador urbano, e que este ultimo tenha mais probabilidades de bater com a cabeça numa chapa de automóvel, etc. Mas depende também das velocidades praticadas por cada tipo diferente de utilização, originando naturalmente risco de quedas diferente. Mas mais complicado ainda é que o uso do próprio capacete influência a gravidade e tipo de queda. Por exemplo na Holanda há mais ciclistas que usam capacete com traumatismo craniano a dar entrada em hospitais, que ciclistas que não usam capacete (este resultado contra-intuitivo deve-se obviamente ao facto de que os ciclistas que usam capacete praticarem um tipo de ciclismo que é mais atreito a quedas a mais alta velocidade - por exemplo BTT ou estrada). Por outro lado existe a chamada “compensação do risco”. Esta teoria tem dois aspectos: a) ora ciclistas tendem a ter comportamentos de risco mais elevados e portanto cair mais quando usam capacete ou b) os motoristas podem ter comportamento de mais risco em relação a ciclistas que usam capacete (por exemplo ultrapassarem mais próximo destes).

Outro problema frequente com o tipo de estudos que pretende responder a esta pergunta, é quando se baseiam em amostragens antes e depois da entrada em vigor de leis de obrigatoriedade do capacete. O problema principal é que o número de quilómetros praticados de bicicleta, depois da entrada da lei em vigor pode reduzir substancialmente (e de forma mais acentuada se a lei for devidamente fiscalizada). Por isso, os valores agregados de ferimentos na cabeça serão necessariamente contaminados por esta variável relativa à exposição ao risco. É uma questão que levanta muita polémica e amplamente debatia em epidemiologia: o número de ferimentos na cabeça diminui devido ao aumento do uso do capacete ou pela redução do número de quilómetros praticados em bicicleta?

Outro elemento “confundidor” é que a redução do número de quilómetros praticados de bicicleta pode levar a que o risco de queda aumente. Esta teoria, conhecida como “segurança pelos números”, indica que quanto maior é o número de quilómetros praticados de bicicleta ou a pé, em interação com outros modos, maior é a segurança de quem ande a pé ou pedale. Quer isto dizer, que se houver uma redução do número de quilómetros praticados de bicicleta, existirá também um aumento do risco de pedalar. Este fator pode contaminar os estudos que comparam o antes e depois de leis de obrigatoriedade que tiveram um impacto no número de ciclistas a pedalar.

O que se sabe: esta pergunta é bem mais controversa que a primeira. Os valores da eficácia, publicados em revistas científicas com artigos revistos por pares, varia de zero ou negligenciáveis até valores consideráveis. Ultimamente os valores têm estado a ser revistos em baixa. Um facto importante: o valor de 85% muito citado, tem muitos anos, está errado e foi já corrigido pelos próprios autores. Ao responder a esta pergunta já temos que ter outro tipo de critérios, para além da eficácia meramente mecânica. A eficácia do uso do capacete numa sociedade ou país, leva-nos a questões mais vastas e complexas. Se o número de utilizadores de capacete aumentar, aumenta também a percepção que a bicicleta é um meio de transporte perigoso? Se a resposta à pergunta anterior é sim, será que estamos a desencorajar utilizadores, ou pais de utilizadores a autorizar, o uso da bicicleta? E se a resposta é sim às duas perguntas anteriores, e o número de quilómetros praticados por bicicleta baixa, então é perfeitamente legítimo perguntar se as vidas eventualmente salvas pelo capacete, compensam as vidas perdidas pelo aumento do riscos, redução dos benefícios de saúde, económicos e ambientais associados ao uso da bicicleta. Também existem questões éticas associadas: será que numa sociedade em que um elevado número de mais vulneráveis usam medidas de auto-defesa, estamos a aceitar um paradigma em que o mais forte tem o direito de ameaçar o mais fraco? A própria questão B), e dar-lhe prioridade na agenda de investigação, em detrimento de outra, já pode mostrar uma aceitação do paradigma vigente sem o questionar. O que aparentemente pode ser considerado uma abordagem apolítica do problema, aceitarmos o paradigma implica necessariamente já uma posição ideológica no debate.

Possível posição a ter sobre o assunto: Apesar de continuar a ser um assunto científico, temos que estar ainda mais atentos à forma como a investigação foi conduzida e os pressupostos utilizados. Já não estamos a estudar só a eficácia mecânica do capacete. Nesta pergunta os desvios das amostragens podem ser consideráveis e decisivos nas conclusões. Temos que nos questionar que tipo de grupo demográfico estamos a estudar, que tipo de uso fazem da bicicleta, etc. Temos que nos questionar se a “compensação do risco” foi, ou não, tida em consideração. Por outro lado, é legítimo levantar assuntos mais vastos como as vantagens de saúde pública, económicas, sociais e ambientais do uso da bicicleta. É possível que um elevado número de ciclistas de capacete aumente os comportamentos de risco agregados, em relação a todos os outros ciclistas e faça reduzir o número de quilómetros praticados ou o seu futuro crescimento. Por estas e outras questões, é também legítimo levantar questões éticas associadas. Podemos inclusivamente questionar a pergunta B) e até que ponto ela é importante e aceita o paradigma vigente.

C) Existem benefícios sociais para a implementação de uma lei que obrigue o uso do capacete?

O que está em causa: Aqui o debate extravasa claramente as questões científicas e técnicas. A pergunta tem aspectos que dependem em parte da resposta à segunda pergunta (B), mas tem outros que vão muito para além dela. Convém também lembrar que está do lado dos proponentes da alteração da lei, provar que a resposta a esta questão é claramente um sim, porque irá afectar a qualidade de vida de muita gente (não só ciclistas, pois o uso da bicicleta tem impactos no total da população do país). É também importante referir que do ponto de vista estatístico é essencial aferir o efeito da Lei da Obrigatoriedade do Uso do Capacete (LOUC) no número de quilómetros praticados e na percepção do risco do uso da bicicleta para utilizadores e potenciais utilizadores. Esta tarefa não é nada fácil. Existem muito poucos países com LOUC, menos ainda em que esta é universal (algumas são só para alguns grupos demográficos e outras só para fora de localidades) e menos ainda os que a LOUC é devidamente fiscalizada. Por isso será sempre difícil aferir os impactos sociais na sociedade de uma lei deste tipo. E as questões dos benefícios sociais agregados, assim como as questões éticas, são cruciais nesta questão - sendo que as duas primeiras questões podem contribuir para o debate, mas terão que ter claramente uma contribuição muito secundária.

O que se sabe: sabemos que nos raros países em que existem LOUC houve consideráveis reduções do uso da bicicleta. Como estas reduções podem ter outras causas (declínio natural da preferência por adotar a bicicleta, variabilidade do clima, etc.), o assunto ainda é sujeito a algum debate, mas parece haver provas relativamente sólidas que há de facto reduções consideráveis do uso da bicicleta para certos grupos demográficos, em comunidades em que a LOUC é fiscalizada (é frequente que não seja, e por isso naturalmente pode ter efeitos diversos sobre a apetência de usar ou não a bicicleta). Sabemos também que nos países em que existem LOUC os sistemas de bicicleta partilhados são um fracasso comparado com ou que não têm essa obrigatoriedade - é difícil conseguir formas práticas de encorajar o uso dos sistemas de partilha de bicicleta de forma espontânea quando existe a obrigatoriedade do uso do capacete. Sabemos também que nos países que é menos perigoso circular de bicicleta, o uso do capacete é extremamente reduzido, provando cabalmente que existem outras formas mais eficazes de proteger os ciclistas. Sabemos também que os efeitos positivos para a saúde pública por quilómetros percorridos em bicicleta são desproporcionalmente maiores que as eventuais vidas salvas pelo capacete. Todas estas razões levam a que instituições muito sérias, como a OMS e a RoSPA, a não recomendarem a obrigatoriedade do capacete para ciclistas (recomendam obviamente a obrigatoriedade para motociclistas porque o problema é muito diferente - mais benefícios para a saúde pública e individual do uso do capacete, sem os efeitos adversos caso reduza os quilómetros percorridos de motociclo). Esta também é a razão porque é que países com políticas muito rigorosas de redução do número de mortos em ambientes rodoviários durante décadas, também não avançam para a adopção de LOUC.

Possível posição a ter sobre o assunto: devemos exigir estudos que provem cabalmente, e com toda a certeza, as vantagem sociais de uma LOUC. A prova está claramente de quem quer uma alteração da lei e advoga a existência de uma LOUC. Não devemos deixar que este debate seja contaminado com percepções empíricas de segurança (“claro que é perigoso pedalar sem capacete”, “se os motociclistas também são obrigados” “nos automóveis também é obrigatório o cinto de segurança”, etc.), temos que ser muito rigorosos nos argumentos e perceber que cada modo de transporte implica riscos e benefícios sociais muito diferentes. Devemos muito menos aceitar argumentos baseados em percepções ou histórias individuais (“a minha prima ainda está viva porque estava de capacete”, “eu caí uma vez e o meu capacete partiu em dois”, etc.), a alteração de uma lei não pode obviamente se basear neste tipo de argumentos. Devemos também ter cuidados de não misturar as questões acima (A ou B) com o debate que encerra esta questão C) (“é óbvio que qd o ciclista cai de cabeça é melhor que tenha capacete”, “experimente bater com a cabeça numa parede com e sem capacete”, etc.). Estamos a debater uma questão complexa e com enormes consequências sobre o futuro da mobilidade e qualidade de vida das nossas cidades. É perfeitamente possível, aceitável e legítimo acreditar que o capacete protege a cabeça quando um ciclista cai de cabeça e ser contra uma LOUC. É perfeitamente possível, aceitável e legítimo acreditar que um determinado grupo demográfico ou tipo de uso da bicicleta beneficie do uso do capacete (por exemplo BTT) e ser contra uma LOUC.

D) Devemos recomendar o uso do capacete?

O que está em causa: é essencial saber quem recomenda, a quem recomenda e como. É muito diferente se a recomendação é feita por um organismo oficial ou por um amigo. Também é fácil de perceber que os níveis de risco associados ao uso da bicicleta dependem muito do grupo demográfico (ex. idade e género), mas também do uso que se faz dela (urbano, estrada, BTT, downhill, etc.).

Recomendação oficial: uma recomendação por parte de um órgão oficial deve pelo menos partir de provas concretas avaliando o risco por quilometro percorrido e consequentemente especificar para quem é dirigida a recomendação. Uma recomendação genérica da parte de um órgão oficial é geralmente produto de preconceitos e sinal que quem recomenda não estudou, ou analisou, o problema de forma séria e abrangente. Principalmente se tivermos em consideração que a recomendação poderá ter um efeito adverso no número de quilómetros percorridos por bicicleta. Quando a recomendação é feita por um órgão oficial também é legítimo perguntar qual é o objectivo. A recomendação é feita para diminuir a probabilidade do indivíduo ter uma ferimento na cabeça? Ou é para diminuir os custos sociais, se os indivíduos acatarem a recomendação? A resposta a estas duas questões simultaneamente pode ser complexa, pois as respostas podem ser diferentes e contraditórias. A primeira pergunta remete para a probabilidade de um indivíduo cair de cabeça, que como já disse depende muito do grupo demográfico que faz parte e que uso dá à bicicleta. Se a intenção é a segunda, temos que ter em considerações e provas concretas e saber exatamente se a recomendação trás ou não benefícios sociais.

Outra questão importante a ter em consideração numa recomendação oficial é como é que a recomendação é feita. Antes de mais, e tendo em consideração a diversidade de riscos associados ao uso da bicicleta, se houver vontade de recomendar o uso do capacete, a recomendação deve ser dirigida a grupos específicos. Depois, se sabemos que o risco de redução do uso da bicicleta existe, então é extremamente importante não usar campanhas de recomendação que tenham um efeito adverso no uso da bicicleta. Se assim o fizermos, podemos estar a ter um efeito social negativo. Principalmente se estamos a dirigir-nos sem critério, e possivelmente a reduzir o número de quilómetros praticados em cidade. Campanhas genéricas para o uso do capacete, para além de terem uma posição marcadamente ideológica de aceitação do paradigma vigente, fomentam, em maior ou menor grau, o medo e poderão ter efeitos desastradamente adversos no uso da bicicleta e consequentemente efeitos sociais negativos. E existem argumentos éticos a considerar: até que ponto um organismo oficial deve recomendar o mais frágil a proteger-se se não faz o suficiente para reduzir o perigo na fonte.

Recomendações pessoais: neste caso, a recomendação pode ser personalizada para quem, e que uso faz da bicicleta, e é por isso mais legítima. Temos no entanto que ter em atenção o nível de informação e experiência de vida e personalidade de quem nos está a recomendar. Mas também, neste caso, é mais fácil o receptor da recomendação separar o “trigo do joio”. É frequente que a recomendação seja feita “porque sim”, ou porque “está na lei” (não está), ou porque “Uma vez a minha prima…”, ou ainda “O Joaquim Agostinho…” - nestes casos é conversar com calma e explicar que diversos usos implicam diferentes riscos. Claro que muitas pessoas, apesar de não terem argumentos e informação, recomendam de forma bem intencionada. Mas não deixa de ser interessante e fascinante a preocupação genuína e sincera pelos outros, quando quase todos nós tem, quase inevitavelmente, comportamentos de risco ao volante do automóvel e também ignoramos riscos mensuravelmente mais graves (como já alguém comentou, ninguém em espaço publico grita para um fumador “eh pá, porque é que estás a fumar?”, ou faz a mesma pergunta quando vê uma fotografia de um amigo no facebook a fumar). Também é frequente que esta recomendação seja de um amigo ou amiga ligada ao tratamento hospitalar e por isso com uma visão dos riscos algo peculiar e não contextualizada.

O que se sabe: existe muito menos investigação sobre os efeitos da recomendação (e a forma como é feita) no uso da bicicleta. Mas a que existe, parece confirmar que a recomendação pode ter um efeito negativo na percepção da segurança da bicicleta e possivelmente no seu uso. Sabemos também que a percepção de risco do uso da bicicleta, contrariamente ao automóvel e motociclo, é regra geral pior que o risco real por quilómetro percorrido em uso quotidiano urbano. Ao aumentar a percepção do risco, contrariamente ao automóvel e motociclo, estamos por isso a desinformar os utilizadores, ou potenciais utilizadores, da bicicleta para percursos urbanos. Sabemos também que pela “compensação do risco” e a “segurança pelos números” a recomendação pode ter efeitos adversos e contra-intuitivos.

Possível posição a ter sobre o assunto: em relação ao discurso oficial, podemos ser contra campanhas sem apresentação das devidas justificações, sem especificação dos seus objectivos e provas dos benefícios sociais da campanha. Devemos também questionar a prioridade de dinheiro público ser gasto em campanhas que se foquem na auto-proteção dos mais vulneráveis, quando a prioridade ética, e até de eficácia pública e económica, devia ser sobre comportamentos na origem do perigo rodoviário (nomeadamente o excesso de velocidade e abuso do meios de transporte perigosos). Finalmente devemos ser contra campanhas que fomentem o medo do uso do espaço público e tenham efeitos dissuasores na apetência de fazer mais quilómetros em meios de transporte mais eficientes e seguros.

E) Devemos usar capacete?

O que está em causa: essencialmente deveria estar em causa o risco da actividade e do incomodo associado para o diminuir. No entanto, o risco é uma medida difícil de quantificação, porque depende do grau de exposição ao perigo e das consequências inerentes a um determinado acontecimento. É normal usar como medidas de risco, para o caso da necessidade ou não de usar capacete, por exemplo o número de ferimentos por quilómetro percorrido. Este tipo de medidas que nos ajudaria a tomar uma decisão mais informada, são difíceis de calcular por variadas razões. Em Portugal não existem estatísticas relativas ao número de quilómetros praticados em bicicleta e a pé. Depois seria necessário que esse número de quilómetros, fosse estratificado por grupo demográfico e por tipo de uso. O risco varia muito, assim como as consequências e gravidade do ferimento. Por isso, ficamos limitados à nossa intuição e percepção muito pessoal do risco. O que não é necessariamente errado e, na a maior parte das vezes, permite pedalar de forma mais feliz (quer a intuição seja a favor de pessoalmente usarmos ou não o capacete). Está decisão pessoal e intuitiva também depende muito do nosso uso da bicicleta - por exemplo, alguém que vá comprar pão no seu bairro poderá achar que não é necessário usar o capacete, mas usá-lo quando vai fazer BTT ao fim de semana.

O que se sabe: É de assinalar que a resposta a esta pergunta é essencialmente intuitiva e que a intuição depende muito da nossa apetência a tomar riscos. Está apetência é extremamente pessoal e dificilmente debatível. Depende da educação, do género, da cultura em que crescemos e pedalamos e até da disposição ao acordar de manhã. Convém no então dizer que a intuição, frequentemente aproximada e correcta, também nos engana com frequência, precisamente porque influência em si mesmo a nossa apetecia para o risco e a possibilidade de uma queda - por exemplo, sabemos que muitas quedas são precisamente perto de casa (“quando se vai comprar pão”) porque precisamente a percepção do risco é menor e o risco de queda acaba por ser maior, sabemos também que pessoas com capacete podem ter mais comportamentos de risco (principalmente crianças).

Possível posição a ter sobre o assunto: sendo uma escolha individual sem consequências de maior para o resto da sociedade, é prudente ser “agnóstico não proselitizador”. Mais interessante, será conversar sobre a questão “porque é que EU não uso capacete?”. Tentar explicar que mesmo essa escolha individual é quase sempre contextual. E principalmente que o debate não confunda as várias vertentes, o que acontece quase sempre e é uma infindável confusão. Geralmente as pessoas que se envolvem no debate estão mais de acordo que em desacordo. Mesmo o mais acérrimo defensor do uso, provavelmente não usa em Amesterdão ou no quintal. É fácil argumentar que para todos nós a decisão é contextual e pessoal. O que varia é a nossa apetência ao risco. Mas também é fácil de provar que essa apetência ao risco não pode ser explicada de forma racional e estatisticamente, o que não é necessariamente errado mas torna o debate impossível, contrariamente ao debate saudável das perguntas A), B), C) e D). É importante também chamar a atenção que perante as situações de iniquidade em meio rodoviário, perante os desafios ambientais e de qualidade de vida das nossas cidades o debate do capacete é geralmente uma distracção dos enormes e urgentes problemas a resolver.


Bom, este texto era para ser algo muito curto sobre a necessidade de saber qual é a pergunta antes de procurarmos a resposta. Está enorme, porque não tive tempo para ser mais breve. Não usei referências científicas e outras por falta de tempo e para facilidade de leitura. Este texto é uma primeira tentativa de meditação sobre o problema por isso é natural que seja editado e tenha outras versões mais completas, e eventualmente mais limpas de possíveis repetições, erros de argumentação ou lógica e com mais referências externas.

Comentários são muito bem-vindos.

Um bom domingo a todos.

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Bem, acho que encerraste a questão e escreveste o artigo :slight_smile: É só rever e adicionar fontes!

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um autêntico tratado, parabéns Mário!

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Parabéns pelo texto, Mário.

Acho que devia ir para o blogue dividido em vários artigos.

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Dito isto desta maneira , que mais há a dizer?.. Dividir em fscículos e se possível até condensar.

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@MarioJAlves, essa notícia é boa, mas a fonte pode não ser credível aos olhos de outros. Será que existe a mesma notícia de uma fonte que não esteja ligada às bicicletas?

@tiagosantos a minha sugestão não era citar o pedais, mas a própria PSP que admite que tem que anular a multa.

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Título de primeira página no Destak:

Jovens não usam capacete nem cinto

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simplesmente anedótico :smile:

Afastam-se do tabaco e do álcool, têm uma boa perceção da sua imagem corporal e praticam algum exercício físico. Mas há comportamentos de risco que continuam a ter, como não usar capacete ao andar de bicicleta ou ‘esquecer’ o protetor solar

Como quem diz, os jovens tugas até são bons rapazes mas desgraçam-se na bicicleta :smiley:

Depois do excelente post do Mário, acaba por ser um pouco redundante deixar aqui o que quer que seja, mas ainda assim:

Artigo meu no blogue: http://www.lisboncyclechic.com/2010/11/o-que-meter-na-cabeca

Excelente documento do Theo Zeegers, da Fietsersbond: http://cyclist.ie/wp-content/uploads/2014/07/Cycle-helmets.pdf

Página da ECF sobre o tema: http://www.ecf.com/advocary/road-safety/helmets-and-reflective-vests/

Página no FB de apoio à campanha da ECF (não oficial): https://www.facebook.com/no.helmet.law

Portal da FPCUB sobre o código da Estrada: http://codigodaestrada.org/

(continua - só posso colocar 5 links por post)

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(continuação)

Bicycle Helmet Research Foundation: http://www.cyclehelmets.org/

Termino com esta frase do Chris Boardman, que resume bem a questão:

“That is why I won’t promote high vis and helmets; I won’t let the debate be drawn onto a topic that isn’t even in the top 10 things that will really keep people who want to cycle safe."

in http://www.cyclingweekly.co.uk/news/latest-news/chris-boardman-responds-criticism-decision-wear-helmet-142639#d0QfiQxhLzKTW5XU.99

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Podemos sempre falar no caso australiano…

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Ser obrigatório irá ter consequências sociais, tão simples como isso. Ao obrigarmos as pessoas a usar capacete iremos afastar ainda mais os grupos vulneráveis do uso da bicicleta e são esses, na minha humilde opinião, que fazem muita falta nesta minoria dos utilizadores de bicicleta. Por grupos vulneráveis refiro-me aos mais jovens (crianças e juvenis), e claro, as pessoas mais velhas. A obrigatoriedade irá acentuar ainda mais a insegurança, e fomentar os medos inerentes de partilhar a estrada com veículos a motor e como costumo dizer, só os corajosos é que andam de bicicleta em Portugal. Com uma infraestrutura de ciclovias, que separasse o carro das bicicletas esta discussão nem faria sentido. Agora, ao partilhar estradas com veículos a motor, ao sermos obrigados a circular em zonas onde a média de velocidades é de 90km/h+, em faixas de BUS completamente esburacadas e inundadas de taxistas agressivos é difícil de defender a não obrigatoriedade. E sinceramente, acho que até certo ponto, é isso mesmo que as autoridades competentes querem (afastar os utilizadores de bicicletas das estradas — a campanha da ANSR é uma prova obscena disso mesmo).

Sinceramente, acho que estas e outras discussões do género são infrutíferas para nós, a malta dos pedais. É um fait-divers. Seria-nos bem mais útil discutir formas de pressionar as autoridades competentes para a construção de infraestruturas (ciclovias, bicicletários) que promovam o uso seguro da bicicleta como meio de transporte e que roubem espaço ao automóvel no centro da cidade (um simples exemplo: se em Lisboa decidissem construir duas ciclovias, na rua do Ouro e da Prata, seria necessário retirar uma das duas faixas de rodagem dessas ruas - menos espaço para os carros, menos carros na estrada, mais bicicletas, um passeio maior para os peões, mais pessoas a usar o comércio local). Na cidade de São Paulo, no Brasil, o presidente de câmara está a efectuar uma autêntica revolução na cidade semeando ciclovias por todo o lado. E os bicicletários já existem há muito tempo. Por cá discutimos capacetes.

Infelizmente creio que ainda existem muitos utilizadores de bicicleta que teimam que o seu lugar é na estrada, junto dos carros e enquanto assim for não iremos ter uma verdadeira “revolução” nos meios urbanos, no que toca à mobilidade, verdadeiramente universal (como a bicicleta deveria ser) — para todos, e não só para os corajosos.

E sim, como alguém disse aí pra cima — em Portugal uso capacete (como um placebo), na Holanda nunca precisei de usar (mas hey, na Holanda era por vezes ultrapassado por senhoras de 80 anos nas suas pasteleiras carregadas com as compras do dia :- ).

Abraço.

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Mário, não é de por o link para “o” artigo?
Parece-te contraproducente?
Ab
Rui

Olá Rui,

Referes-te aquele texto enorme que escrevi ali em cima? Ainda está a marinar. Estava à espera de algumas opiniões e advogados do diabo antes de o retomar. Gosto de deixar-me esquecer do texto antes de o retomar. Talvez o transforme num artigo no futuro. Olha, ainda tenho que limpar a tua tradução dos capacetes :smile:
Abraços

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